domingo, 27 de março de 2011

MÚSICA PARA SEUS OUVIDOS - PARTE 4

Voltando ao estado natural das coisas, vendo que não tinha o mais o que fazer naquele ônibus, o delinquente deu ordens ao motorista para que parasse imediatamente, pois eles iriam saltar, e tornou a lembrar para que ninguém tentasse nada que resultasse em mortes ou ferimentos. Claro que não houve reações e eles desceram do coletivo sem maiores contratempos, sumindo da vista de todos como num passe de mágica. Os passageiros não tiravam os olhos de Lavínia, como se ainda não tivessem assimilado o que havia acontecido, fora o fato de terem sido saqueados. A menina, por sua vez, ainda sob o efeito daquele fato imprevisível, levantou do banco de uma maneira quese robótica, esticou o braço para cima e puxou a cigarra da condução para poder saltar no ponto a seguir, que para sua sorte já estava bem próximo ao seu destino. Desceu a escada do ônibus, esquecendo de agradecer ao motorista, coisa que ela sempre fazia, e foi sentar num banco à beira da calçada, para tentar voltar ao normal e refletir um pouco sobre o que havia acontecido. A tremedeira que a acometera, assim que ele levantou do banco do ônibus, estava começando a diminuir um pouco. Ela desligou seu aparelho e o botou junto de sua coxa esquerda e ali ficou por um bom tempo. No fundo de sua mente se desenhou uma nova denominação para quela caixa musical. Talismã. Meia hora depois ela retomou o caminho para o centro da cidade, já não tão longe assim. Poderia completá-lo a pé. Uma leve brisa bateu em seus cabelos, fazendo com que uma mecha encobrisse por alguns segundos o lado direito do seu rosto, afastando-a de modo suave, ela se sentiu um pouco mais revigorada e calma, seguindo, então, decididamente para completar o restante do percurso. ******************** CONTINUA

domingo, 20 de março de 2011

MÚSICA PARA SEUS OUVIDOS - PARTE 3

Ao terminar o "serviço" de recolhimento de dinheiro e objetos, o bandido foi em direção à Lavínia. Sob o olhar confuso e desconfiado de sua companheira de trabalho, ele sentou ao lado da adolescente e fez com que ela voltasse ao mundo real e cruel com um toque de mão no seu ombro direito. Lavínia teve um choque ao ver aquele sujeito ao seu lado, com uma arma atravessada na cintura, lhe pedindo seus fones. Claro que ela pensou que o sujeito ia lhe arrebatar o aparelho, pois estava na cara que se tratava de um assalto, mas ao retirar os fones dos ouvidos e, assim, ouvir a voz do bandido lhe fazendo o pedido, notou certa ênfase na palavra "emprestar", e ficou mais abismada ainda com a declaração do inesperado assaltante. Ele lhe disse que enquanto passava pelo corredor do ônibus, ouvira a música que saía do seu aparelho e, daí, não quisera interromper, e completou isso dizendo que ela também possuía um tremendo gosto musical, e, só por causa disso ia liberá-la daquele assalto. Só queria ouvir, por alguns instantes, aquela música gloriosa para atenuar um pouco seu ofício tão imprevísivel e perigoso.
Lavínia ouviu tudo isso com uma expressão entre o espanto e a sensação muito terrível de que aquilo poderia ser uma espécie de brincadeira com resultados muito tenebrosos. Mas não tinha alternativa e entregou o aparelho nas mãos do bandido, que o recebeu com um júbilo tal, que, se fosse em uma outra situação, Lavínia ,certamente, também ficaria exultante, só que ela estava tensa e extremamante ansiosa diante daquela situação totalmente inusitada.
O sujeito acabou de ouvir o restante da música, elogiou o cantor e a sua obra e logo a seguir devolveu o aparelho e seus respectivos fones para uma espantada Lavínia, que o recebeu de volta com as mãos trêmulas e olhar arregalado. Jamais poderia imaginar que um assaltante poderia ter aquele tipo de comportamento. Em sua opinião o cara devia ter vinte e dois ou, no máximo, vinte e quatro anos. O aparelho quase cai de sua mão no momento em que o dito cujo o devolve.

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CONTINUA

domingo, 13 de março de 2011

MÚSICA PARA SEUS OUVIDOS - PARTE 2

A mulher se levantou de um dos bancos à frente de Lavínia e os outros dois vieram detrás. Ou melhor, um veio, o outro ficou dando cobertura para que o comparsa fizesse a "limpeza" nos passageiros. Embora fosse incumbido dessa tarefa o sujeito parecia ser o líder do trio, pois ao mesmo tempo em que recolhia os pertences das pessoas no ônibus, ele ditava ordens para os parceiros entre palavras e gestos. Para a mulher ele mandou que ficasse de olho no motorista e, ao mesmo tempo, vigiasse o restante do coletivo, e para o assaltante da parte traseira, com um gesto do olhar, determinou que "cuidasse" do cobrador. O meliante, que certamente já conhecia aquelas determinações, não perdeu tempo e se dirigiu ao assustado funcionário, um jovem, entre vinte e dois ou vinte e quatro anos, que trabalhava há um ano e meio naquela linha e que acabava de estrear como cobrador assaltado, daí o seu pavor genuíno ao encarar o círculo do cano de um impiedoso revóver calibre trinta e oito, o famoso tresoitão.
As instruções do assalto tinham sido dadas pela mulher. Ela se dirigiu aos passageiros de modo muito calmo e com voz muito firme, mas muito feminina, deixou todos a par do infame evento que se realizaria a seguir. Disse que ficassem todos calmos, que não fizessem nada que colocasse suas vidas em perigo, porque eles só queriam seus pertences, nada mais do que isso, sendo assim, se não houvesse nada que atrapalhasse o andamento do serviço, todos sairiam felizes, sem ferimentos ou coisas piores. Ela portava, também, um "tresoitão", e parecia ter muita intimidade com a máquina. Seu rosto denunciava uma idade duvidosa, poderia ter vinte e cinco anos, como também poderia ter vinte. Aquela vida errante já provocava marcas em seu semblante.
Foi só aí que o líder começou o saque. Mais tarde se ficaria sabendo que os dois eram amantes.
Então algo insólito aconteceu.
O bandido que se encarregou de saquear os indefesos passageiros, passou sem incomodar Lavínia, que continuava alheia ao que acontecia ao seu redor. Ela, com o rádio a todo volume, olhava para fora do ônibus através da janela, na verdade quase que cochilava, sendo assim não notara nada que acontecera até então. No seu banco só ela se encontrava, e agora, a voz de Djavan dominava seu universo atual.
Mas ela foi tirada bruscamente daquele torpor.

domingo, 6 de março de 2011

MÚSICA PARA SEUS OUVIDOS - PARTE 1

MÚSICA PARA SEUS OUVIDOS
A blusa com o logotipo da escola, onde fazia o supletivo, era suficiente para que ela entrasse pela porta da frente do ônibus, pelo menos tinha sido assim até o momento, e Lavínia tinha certeza quase absoluta que continuaria sendo, nem que fosse só aquela vez. Portanto ela instalou os fones de seu indefectível rádio de pilha, feitos especialmente para quele tipo de uso, nos ouvidos, e aguardou a chegada do coletivo que a levaria ao centro da cidade. A distância do seu bairro até o centro do Rio de Janeiro constituía de tempo suficiente para que ela pudesse curtir uma boa quantidade de músicas, não só pelo preenchimento do tempo, mas, acima de tudo, pelo seu prazer pessoal. Música para ela tinha a mesma importância que a própria respiração.
O que tornava o fato curioso, ou, na visão de alguns, improvável, era seu gosto musical. Ela sintonizava seu dial sempre numa emissora comumente ouvida, geralmente, por pessoas maduras, pessoas que achavam que aquela fase inconsequente da adolescência já estava a léguas de distância, e que aquele gosto por "músicas" mais sérias se instala quase naturalmente. Locutores com vozes impostadas e austeras dão o tom da nova postura. Ser contido musicalmente se torna, então, um quesito muito importante nessa nova etapa.
No que dizia respeito a Lavínia, tudo isso não passava de conversa fiada. Ela simplesmenente gostava desse tipo de música e ponto final. E é bom dizer também que ela não fora influenciada por ninguém, nem por amigos ou amigas, irmãos, pais, etc. Na verdade alguns de seus amigos estranhavam seu gosto, mas respeitavam, mesmo porque Lavínia tinha personalidade independente e voluntariosa, mas nem por isso arrogante, muito pelo contrário, seu senso de voluntariado encobria e iluminava sua espontaneidade às vezes explosiva.
O ônibus finalmente surgiu entre os outros que circulavam no mesmo bairro.
Não foi diferente. Lavínia fez sinal e o motorista abriu a porta traseira sem maiores problemas e ainda, com um sorisso no rosto, permitiu que ela entrasse.
Não se fazendo de rogada, ela prontamente adentrou no veículo, devolvendo o sorriso em maior intensidade para o condutor, pois sabia que manter o bom humor naquela função era tão importante quanto difícil, ainda mais sabendo que viajaria de graça até seu destino.
Na vivacidade e na, até certo ponto, inocência dos seus dezessete anos, se acomodou do melhor modo possível em um dos bancos na metade do ônibus,e, alegria das alegrias, no canto, com direito a janela e vento batendo no rosto, brincando com seus cabelos lisos e castanhos com algumas manchas aloiradas. Em sua opinião, um prazer indescritível.
Lembrando da distância, ela se se deixou levar pela música, que no momento se tratava de um sucesso de Milton Nascimento, Caçador de Mim, e esqueceu-se do tempo e do mundo ao seu redor.
O volume do aparelho de Lavínia estava um pouco acima do normal, o que chamava a atenção de alguns passageiros mais próximos a ela, no entanto eles não pareciam se incomodar, talvez por se tratar da música agradável, ou até mesmo pelo perfil suave e distante da menina, dona do respectivo aparelho sonoro. Bem sonoro, por sinal.
Mas lá pelo meio da viagem a paz foi quebrada.
Três personagens indesejáveis surgiram para mudar a rotina daquela viagem. Três assaltantes.
Uma mulher e dois homens.

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CONTINUA